As discussões em torno do Projeto de Lei n.º 6.299/2002, que trata da atualização da Lei n.º 7.802/1989 (popularmente conhecida como “Lei de Agrotóxicos”) vêm ensejando embates fervorosos entre diversos setores da sociedade. De um lado, o setor agroindustrial, que defende a atualização da Lei n.º 7.802/1989, sob o argumento de que o arcabouço regulatório atualmente vigente é burocrático e prejudica a disponibilização de produtos necessários à defesa das lavouras.
De outro, alguns segmentos da sociedade, dentre os quais ambientalistas, entes governamentais e não governamentais, além de entidades do setor de saúde, os quais alegam que o Projeto de Lei n.º 6.299/2002 representaria um retrocesso e poderia colocar em risco a saúde da população e o meio ambiente ao arrefecer a regulação para o registro e controle destes produtos.
O debate tem se mostrado amplamente inflamado, o que se comprovou nas sessões da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, na qual o texto Substitutivo do Projeto de Lei foi aprovado, em junho de 2018. Infelizmente, a despeito da intensidade das discussões travadas, o que se nota é a ausência de análises técnicas mais profundas sobre o texto do Projeto de Lei, à luz do sistema regulatório atualmente vigente, assim como em relação às efetivas alterações que estão sendo propostas.
Uma das grandes polêmicas, deflagradora de um renhido pugilato entre os dois grupos, diz respeito à proposta de substituição do termo agrotóxicos, atualmente constante na Lei n.º 7.802/1989, pelo termo pesticidas.
A ala que critica o Projeto de Lei n.º 6.299/2002 sustenta que o termo pesticidas ocultaria o risco intrínseco destes produtos agroquímicos. Argumentam que somente o termo agrotóxicos transmitiria a compreensão de que tais produtos seriam, em sua essência, tóxicos.
O setor agroindustrial, por seu turno, defende o caráter técnico do termo pesticidas, o qual seria desprovido de viés ideológico favorável ou contrário a tais produtos, além de ser o termo mais utilizado pelas legislações da maioria dos países.
Para além da índole ideológica que permeia este tema, a análise crítica quanto ao termo que seria mais adequado já foi objeto de aguçado estudo por parte de pesquisadores nacionais. Em ensaio científico publicado em novembro de 2018, Peter Rembischevski, servidor da ANVISA, e Eloisa Dutra Caldas, professora de Toxicologia da Universidade de Brasília (UnB), examinaram com louvável rigor analítico todos os matizes que envolvem o assunto.
Partindo do contexto histórico que levou à adoção do termo agrotóxicos pela Lei n.º 7.802/1989, os pesquisadores avaliaram, com isenção científica, se esta estratégia de comunicação alcançou o seu propósito. Para tanto, se debruçaram sobre vasto material bibliográfico e investigaram esta estratégia a partir de três eixos (i) a percepção do risco dos agricultores em relação aos agroquímicos; (ii) a análise da ocorrência de intoxicações; e (iii) o impacto desta estratégia no incremento ou redução da comercialização destes produtos. O estudo abordou ainda as inconsistências semântica e técnica deste termo, passando pela inadequação do emprego de neologismos em leis, caso do termo agrotóxicos.
Dentre as considerações mais relevantes presentes neste ensaio, destacam-se:
- O levantamento acerca da terminologia empregada em países de língua inglesa e francesa (pesticide) e de língua espanhola (plaguicida);
- A abordagem comparativa entre a estratégia empregada pelo Brasil e pelos demais países quanto a este tema. Os autores discorrem sobre o curioso fato de, três décadas após a adoção do termo agrotóxicos no Brasil, nenhum outro país, inclusive os seus vizinhos latino-americanos, ter optado pela mesma estratégia.
- O fato de os regulamentos da União Europeia utilizarem a expressão plant protection products, com conotação mais próxima à locução defensivos agrícolas do que ao termo agrotóxicos, a despeito da orientação destes países ser mais rigorosa em relação a esta classe de produtos;
- A peculiaridade de existirem diversos outros produtos com natureza tóxica (tintas, saneantes domiciliares, medicamentos), sendo que apenas os pesticidas são explicitamente tachados como tóxicos em lei.
- A existência de estudos conduzidos em inúmeros países investigando os fatores correlacionados à percepção de risco dos agricultores em relação aos pesticidas. Em nenhum destes estudos teria sido relatada a influência do termo sobre a percepção do seu risco; e
- A reflexão sobre as proposições apresentadas por Eduardo Garcia, em sua tese de Doutorado defendida perante a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo2, na qual explora a eficácia da Lei n.º 7802/2009, após 10 anos de sua publicação. A conclusão do pesquisador foi a de que não teriam sido observados sinais de que a estratégia de utilização do termo agrotóxicos tenha impactado no número e/ou intensidade das intoxicações e tampouco na estabilização ou redução da comercialização destes produtos no país.
Em suma, os pesquisadores concluíram que a denominação legal dos produtos não influencia na percepção de risco dos agricultores, havendo a possibilidade de causar o efeito inverso: disseminar a sua utilização diante da associação intuitiva entre capacidade tóxica e maior efetividade destas substâncias, além de eventuais propensões ao seu uso como agente suicida. Também apontaram que as estatísticas atinentes aos relatos de intoxicação e aos níveis de consumo não corroboram a tese de que o termo empregado possa ter reduzido a utilização dos produtos ou os episódios de intoxicação.
A partir disso, ressoa evidente que a discussão sobre o termo mais apropriado para a designação destes produtos encerra uma questão adjacente e de menor importância, inobstante o termo pesticida seja, de fato, o mais congruente, por critérios científicos, técnicos, semânticos e legais abordados no aludido estudo. Em realidade, o debate deveria se ater à necessidade de maiores investimentos para a educação e conscientização de agricultores, e mesmo da população em geral, para compreensão quanto ao uso correto destas substâncias e o seu efetivo potencial de risco, de forma a minimizar os episódios de intoxicações e reduzir os seus efeitos ao meio-ambiente.
De outra parte, o avanço da tecnologia para o gerenciamento de pesticidas sinaliza ser o caminho mais acertado para o uso responsável destes produtos, em termos de comercialização consciente e redução do impacto ambiental, além de propiciar maior proteção aos trabalhadores que manipulam tais substâncias.
Sabe-se que o setor agroindustrial vem ampliando o uso de tecnologias sofisticadas que podem auxiliar de forma concreta no uso racional de pesticidas3. Os exemplos são múltiplos e animadores: a utilização de drones, com o mapeamento aéreo das áreas em que os produtos são aplicados, permite a elaboração de gráficos detalhados e análises automatizadas, o que viabiliza a maximização da eficiência destes produtos, reduzindo o seu desperdício4. Há casos em que os próprios drones realizam diretamente a aplicação do produto, diminuindo o contato do homem com a substância.
O mesmo ocorre com experiências envolvendo a utilização de câmeras e sensores ópticos instalados em veículos pulverizadores, de forma a restringir o emprego das substâncias às áreas em que existe cobertura vegetal. A tecnologia possibilita a identificação específica da área em que há a praga, concentrando a aspersão do pesticida apenas onde ele é efetivamente necessário. Ou seja, a precisão tecnológica gera economia e, também, beneficia o meio ambiente, ao atenuar a aplicação destes produtos, salvaguardando a saúde do trabalhador.
Nesta conjuntura, seria recomendável que a atenção dos envolvidos nas deliberações sobre a atualização da Lei n.º 7.802/1989 se voltasse para questões regulatórias mais pertinentes do que a mera definição do termo correto para designar os agroquímicos. Este debate, considerando-se a ineficácia do objetivo buscado pela utilização do termo agrotóxico, revelou-se despiciendo, ainda que o termo pesticida seja, de fato, o mais correto, dado o seu caráter técnico e por ser adotado pela comunidade científica.
De toda forma, a regulação de novas tecnologias, como visto, pode ser um alento nesta disputa, por delinear um caminho de harmonia entre o desenvolvimento do setor agroindustrial, permitindo-lhe maior competitividade, e emprego racional dos pesticidas, em benefício ao meio ambiente e à saúde do trabalhador.
Por JOAQUIM AUGUSTO MELO DE QUEIROZ – sócio do escritório Fialdini Einsfeld Advogados.
Fonte: JOTA